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  • Foto do escritorMari Goé

Entrevista exclusiva com a banda paulista lōtico, um dos novos e mais potentes nomes do post-metal



-Primeiro de tudo, obrigada pela entrevista, gostei bastante do som de vocês. Vamos falar ali do começo da banda, quando e como tudo começou? De quem foi a ideia?

Guilherme: A ideia inicial de começar a compor uns sons foi do Leo, um dos nossos guitarristas/vocalistas. A banda foi formada inicialmente por nós dois, meio na ideia de fazer algo como um duo de metal industrial, doom metal e shoegaze (a gente ouvia Godflesh e Jesu demais nessa época). Começamos a compor, saíram alguns sons e aí alguns amigos (Bruno Araujo do De Carne e Flor e Guilherme Lisboa do Mastema) acharam massa a proposta e quiseram se envolver na doideira. Porém, quando vi que tínhamos 3 guitarristas e 1 baixista e possivelmente teria mais alguém na bateria, pensei: E se a gente fizesse algo mais “post-metal”, mais progressivo, com mais camadas? O Leo topou e fomos em busca de uma pessoa para a bateria. De início, buscando alguém mais do nosso círculo, chamamos um outro amigo nosso, o João Paulo Vieira, baterista da Finis Hominis/Colina. Fizemos alguns ensaios, sons novos foram aparecendo e sons antigos foram meio deixados de lado (por enquanto). Porém, tendo em vista que o João toca nessas outras bandas, ele trocou uma ideia com a gente e escolheu sair e foi tudo super de boas! Pra não perdemos tempo, ensaiamos algumas vezes com bateria programada (foi horrível, a gente se perdeu pra caramba, mas foi bom tentar!) até encontrar uma nova pessoa para a bateria.

Nisso eu lembrei que conhecia uma baterista muito foda, e que por mais que eu não tivesse muita intimidade ainda, sabia que ela pirava demais nesses sons desse rolê “post-metal” e que ia encaixar perfeito na banda. Eu sabia disso porque na pandemia até tivemos um breve projeto junto do Marcelo Papa do Rastilho/ex-Bandanos, mas que infelizmente acabou não vingando (mas quem sabe no futuro!). A Ju super topou logo de cara e foi muito doido tudo isso, porque fiquei com receio de tomar um não na cara, mas foi muito o contrário. Ela pilhou demais desde o primeiro ensaio e foi lindo demais ver a banda voltar a acontecer.

E aí pra fechar a formação, nessas idas e vindas de ensaios, gravação do single e correrias para novos sons, o Guimo (Guilherme Lisboa) acabou por sair da banda e ficamos sem baixista. Continuamos ensaiando sem baixo, mas daí foi meio tenso achar outra pessoa. No meio do caminho o Bruno deu ideia de ir pro baixo, e como ficamos “só” com duas guitarras, fomos na busca de um terceiro guitarrista pra manter a formação como era antes. E nisso, no meio do Twitter (sério), encontramos o Pedro Ferreira e rolou uma sinergia e um interesse na banda muito daora desde o primeiro momento. E aqui estamos.


-O primeiro single de vocês é o “Ressonância”, o que esta faixa representa pra vocês?

Juliana: Acho que é um som importante pra marcar que sim, somos uma banda. Nem tanto pra fora, mas dentro da banda mesmo, assumir um primeiro compromisso juntos, de dar um som por encerrado, gravarmos, pensarmos referências, timbres, artes e colocarmos pro mundo também esse compromisso. Tipo, agora é real mesmo, não só no ensaio, existimos.


-A banda se classifica como post-metal, quais as influências de vocês e como que está sendo o processo de construção da sonoridade da banda?

Juliana: Polêmica, que para mim post metal é um termo intermediário, né? Penso que quando a gente tá chamando uma coisa de pós algo, é porque ela ainda é um pouco daquilo, não tem um nome dela. Então, é metal. Além disso, não sei se gosto muito de uma ideia que o termo pode trazer de superação, evolução. Para alguns de nós, me incluo, o metal é uma grande influência na vida, podendo estar mais ou menos presente assim de forma consciente nos sons.

Ressalvas à parte, entendo também a necessidade de um termo pra abrir ali uma nova geração de bandas que declaradamente temos como influência, como Isis, Neurosis, Cult of Luna, Rosetta.

Da composição, acho que vamos em camadas, primeiro temos mais umas linhas de guitarra, que podem aparecer de uma ideia ali de madrugada, qualquer coisa assim. E que vai se desenvolvendo ali posteriormente com a adição das outras guitarras em conjunto. Aí baixo e bateria.

Falando da parte da bateria, primeiro penso o mais basicão que senti ali ouvindo as guitarras e baixo e pra onde tenho a intenção de levar. Como não faço nada com bateria eletrônica, ou midi, o ideal é apresentar essa primeira intenção no ensaio e às vezes transcrever em algum programa. Aí ao longo dos dias vou estudando e desenvolvendo mais a ideia básica. Assim como as outras partes também vão crescendo e mudando, entrando mais efeitos, mudando dissonâncias, distorções, voz, letras. Ou tudo ao contrário também.

Acho que apesar de compartilharmos muitas influências, não colocamos exatamente uma intenção prévia de sonoridade para cada música. Precisa soar como tal, etc. Até pensando na bateria, vejo que é meio um "vai fazendo aí", e depois vemos o que gostamos, achamos que funciona, o que não, etc.

Tanto que citei algumas bandas aí, mas a gente não tem meio que nenhum som que se pareça exatamente com elas, na minha opinião. Uma levada pode lembrar uma coisa, mas aí o resto do instrumental tá indo por outro caminho, coisas assim. Mas não tô falando aqui que estamos inventando a roda, né? Como disse antes, as influências entram mesmo que de maneira não programada, seja Neurosis, Depeche Mode, Sonic Youth ou Margareth Menezes.


-O nome também é bem interessante. O que significa lōtico e como foi a escolha do nome?

Juliana: Ah, foi na base da colaboração com sugestões várias, reunião e votação. Quando eu entrei a banda já tinha um nome, mas aí antes de pensarmos no single Ressonância e aquele compromisso todo que falei antes, decidimos fazer um novo batismo.

Gosto do nome e do que significa, com uma origem ali nas ciências, que descreve ambientes que tem água em constante movimento, como rios, córregos. Acho que essa ideia de fluxo e transformação está presente no nosso som, nas camadas, mudanças de direcionamento, intenção e andamentos. E acho interessante não vir carregado de um significado ou uma mensagem/manifesto.


-E inacreditavelmente, a banda tem 3 guitarristas, o que é algo bem raro, e abriu a banda para várias possibilidades. Quais as diferenças vocês sentiram com a adição de mais um guitarrista?

Guilherme: Total, acho que é bem isso mesmo, várias possibilidades. Inicialmente a gente não imaginava ter nem bateria, então 3 guitarras era algo muito distante do nosso imaginário. Porém, quando a banda virou um quinteto e isso rolou, vimos que dava pra aproveitar o fato de ter 3 guitarras pra alguns pontos que são bem favoráveis. Em momentos que alguma guitarra para de fazer alguma base pesada, sempre temos uma ou duas guitarras segurando essa base, então a densidade do som meio que não se perde. E quando é pra ter muito peso, a gente usa o fato de ter essa massa sonora de três guitarras ao nosso favor. E para as partes que com bastante ambiência, é interessante também que cada guitarra pode fazer uma coisa, por exemplo: uma faz algo “por trás” como uma cama, outra faz uma melodia por cima disso e a última faz um lead/solo junto disso tudo. Algumas coisas assim! Com o tempo a gente foi se acostumando a compor os sons já imaginando 3 guitarras. No início era meio travado, mas depois foi rolando legal.


-A banda também tem a Juliana Lellis como baterista. Como que é pra você ser uma mulher na cena?

Juliana: Acho que respondo essa pergunta em algumas partes.

A primeira, acho que está na própria pergunta, no fato dela existir. Porque não é muito comum vermos em entrevistas um "como é ser um homem na cena" (talvez até alguém devesse perguntar). E isso não é uma crítica à sua pergunta, pelo contrário. Acho que o que ela atesta aqui é que esse é um assunto importante para nós. Porque basicamente sabemos que não vivemos em igualdade de condições e direitos, na prática, entre homens e mulheres.

Então uma outra resposta curta, que acredito que pode fazer sentido para muitas mulheres, é que ser mulher na cena é ser mulher.

Mas elaborando um pouco mais aqui, é afirmando que sou uma mulher baterista e não uma baterista mulher, sabe?

É como ser mulher na rua, na escola, no trabalho, nas férias, no cinema. Como as mulheres motoristas, mulheres cozinheiras, mulheres jogadoras de futebol, mulheres diretoras de fotografia, mulheres jornalistas, mulheres professoras, mães, tias, filhas, netas, avós e assim infinitamente. A cena, assim como todos esses outros espaços e campos que mencionei, é um pequeno nicho da sociedade em que estamos inseridas, onde se reproduzem as mesmas práticas desde antes do nosso nascimento. Claro que temos as nossas especificidades, mas certamente passamos pelos mesmos tipos de situações opressivas e violentas que qualquer mulher em qualquer lugar.

Outra questão mais específica é da Juliana, que é ser uma mulher branca em um país estruturalmente e explicitamente racista. E uma mulher cis em um país extremamente violento também para pessoas trans, 131 assassinatos em 2022. Então, para outras mulheres, vemos ainda a soma de outras violências e opressões.

Assim, pensando em nossas particularidades, falo aqui como está na pergunta, como UMA mulher na cena.

Cena tbm é uma palavra bem abrangente, porque é usada por gente com quem eu não dividiria nenhum espaço de convívio, então esse já é um ponto. A existência de uma cena que é abertamente misógina, homofóbica, transfóbica, racista. Uma cena que de forma declarada me odeia.

Mas vamos pensando aqui que estamos falando de algo mais do nosso universo, de pessoas com alguma visão de mundo mais libertária, tanto no metal como no punk, hardcore e sons mais pesados. Já citei que mesmo nesses espaços temos situações opressivas, casos de assédio e abusos de todas as formas. Então primeiro de tudo, ser mulher aqui é tentar se manter dentro de um lugar que é seu, mas que por vezes se volta contra você.

É claro que muitas coisas mudaram de um tempo que a gente tinha mesmo que lutar pra estar em um show, sabendo que vc ia ter que brigar com um cara que ia querer pegar na sua bunda na pista, que se ficar na grade alguém ia querer tbm te assediar, que se está próximo da pista "vai apanhar que nem os caras", que se subir no palco pra tocar, um monte de nojento vão querer falar coisas pra afirmarem suas inseguras masculinidades pros amigos. Ou até ter que ouvir que vc toca como um cara, como se isso fosse um elogio. Então é um lugar que opera sim numa lógica patriarcal, de homens para homens, que buscam o respeito e admiração de outros homens. Mas o espaço não é só deles e não é só eles.

Hoje posso dizer que também estou muito mais cercada de gente que acredita e gente que sempre acreditou na construção de espaços de fato mais libertários para todas as pessoas, e, de alguma forma, assumem algum compromisso com a transformação dessas práticas. Mas são passos lentos com muitos momentos de embate, reflexão e diálogo.

Sendo mais específica na reflexão sobre esse apoio, por exemplo, uma banda com mulheres tocou em um show. E assim, todas as bandas seguintes com homens se acharam na obrigação de fazer um discurso sobre isso. Claro que isso vem com a intenção de um apoio, mas às vezes vem nessa pegada paternalista, de dar os parabéns, etc. Mas parabéns pelo que exatamente? Pelo som que é bom? Por ter conseguido suportar até ali? Ou numas de que parabéns por finalmente conseguirem tocar um instrumento? Muitas vezes fica essa coisa meio infantilizada, de parabéns por saber tocar bateria, parabéns por montarem uma banda e não um real reconhecimento pela banda, pelo som que fazem.

Outra questão é a do pioneirismo, dos discursos de: "que legal que tem um monte de mulheres tocando, no meu tempo não tinha", "antes não era assim", etc. Isso é fato, felizmente, que mulheres estão ocupando mais esses espaços de maneiras diversas. Mas essa vontade de inaugurar uma nova era, por muitas vezes acaba sendo um apagamento de experiências anteriores. Não é verdade que não tinha nada, tinham poucas, e devíamos sempre lembrá-las e saudá-las aqui.

Isso ainda acaba se juntando com uma ideia de que "então fomos nós, homens, que ajudamos a transformar e abrimos esse espaço aqui pra vcs". Então posso citar aqui também essa vontade de estar de alguma maneira protagonizando a coisa toda por parte dos caras.

Tem ainda uma cobrança também vinda dos caras de diversas formas, de que como mulher sempre temos que estar performando de uma maneira X para "estar apoiando a causa". Teve um caso de assédio, cadê as mulheres que tem que se pronunciar? Como se isso não fosse um assunto deles. Vai ter show com banda de mulheres, então as outras mulheres têm a obrigação de ir lá apoiar. E assim, pra mim é um prazer, sempre foi e sempre será estar em espaços construídos por mulheres, mas é meio que a obrigação dos caras ir lá, ver o show, comprar o disco, camisa, divulgar e tudo mais.

Isso são exemplos que acontecem nos nossos espaços, com as pessoas próximas. Não se trata de propor essa coisa de cancelamento, algo assim, é mais um posicionamento. Pq acho que já deixei claro antes essa distinção entre espaços que a gente repudia e combate e esses outros, nossos, construídos na discussão e reflexão. Porém, não é só porque são os espaços em que acreditamos, ou justamente por isso, que vou simplesmente dizer aqui que são perfeitos e maravilhosos. E para mim, como mulher, o mundo é igual fora deles também, não existe de fato essa alternativa mágica.

Para finalizar, ser uma mulher na cena é principalmente estar no meu lugar, cercada de outras mulheres fodas, inspiradoras. No nosso lugar. Ter profunda admiração por muitas outras que vieram antes de nós e um compromisso com todas as que estão por vir.

-Qual o propósito da banda? Qual a mensagem que vocês querem passar para o mundo?

Juliana: Aqui vou precisar responder um pouco como Juliana mesmo, pq sei que nossos propósitos são diversos e no meu caso, não penso muito na ideia de uma mensagem assim mais específica. Talvez mais numa ideia de uma prática.

Vejo na música, nas artes, um potencial para construção de um lugar de práticas libertárias.

Tem as músicas que já de cara falam literalmente sobre essa emancipação. Mesmo que relatando opressões, estão sempre pensando nessa "liberdade para conduzir nossas vidas", "libertar nossas correntes". Está nas letras, nas capas, desenhos, encartes, nos nomes das bandas.

Ou esse negócio mais do embate de costumes, de contestar uma sociedade conservadora colocando um demônio de sunga na capa dos discos com um monte de espadas. Caveira, bode, violência.

O som é agressivo. Punk, Metal. É logo de saída que já se coloca esse embate.

E nem estou entrando no mérito aqui dos efeitos práticos disso tudo. É mais no campo simbólico mesmo.

Por mais que hoje repudie o pensamento e ações de muitos desses ídolos de quando era mais nova, existia algo que era bem particular em ser uma metaleirinha num país da periferia do capitalismo. Não dá pra comparar com quem tá no Texas, por exemplo. Aqui acho que posso dizer que isso foge, ou pelo menos para mim, pareceu um dia fugir um pouco mais da normatividade da nossa sociedade. A maioria das pessoas na escola não eram assim, na rua, na família, etc.

Então mesmo que isso tudo não esteja exatamente na nossa banda dessa maneira mais direta e literal, é parte do que sou e o que me formou, ou melhor dizendo, desenformou.

Mas é ainda no som em si que encontro essa potência de autonomia. Claro que como experiência minha, que tô lá tocando e sendo feliz naquele instante. Mas também geral, pelo fato de ser algo inútil. (Aqui meus companheiros vão ficar chateados de eu chamar nossa banda de inútil). Mas é pensando que, a princípio, não tem essa finalidade produtiva que nos é exigida a cada segundo, do mundo do trabalho. Pq alguém junta um monte de dó, ré, mi ali? É diferente de acordar com o despertador pro trabalho, pensar como vai chegar, o que tem que entregar, como voltar, o mercado, as contas. É um lugar do tô fazendo pelo dó, ré, mi em si mesmo. Não tem um fazer porque é necessário para tal coisa, como uma obrigação.

Não vou ser ingênua aqui e por isso que tô falando em potência e não realidade. Pq a realidade que a gente conhece é a da música como mercadoria, como uma incrível mercadoria, aliás, que movimenta e que se movimenta no mundo do produtivismo. E como as demais artes, não tem o valor de uso assim definido, tipo o de uma roda, que serve para o carro andar. Pode ser só o valor que a gente mesmo imprime nela. Então fica nesse lugar, entre a mercadoria perfeita e como coisa em si, algo que não serve para nada.

Mas a lógica produtiva que rege, claro. Como disse antes, não tem um mundo à parte. É o aluguel do ensaio, do show, as artes da camisa, a confecção, a prensagem do disco. E que bom, espero que muita gente possa estar trabalhando e sobrevivendo disso. Só que a coisa em sí é um monte de barulhinho junto. Num é um carro, uma geladeira, uma mesa.

E a forma como isso esses barulhinhos surgem, tanto numa banda, como num show, pode se dar como um momento de respiro, de autonomia. É voltar a saber que existimos por um momento, sabe? Fora da Juliana do desempenho, eu penso, sinto e me reconheço nesse som. Nós existimos aqui juntos e temos vontades, desejos! É uma prática potencialmente libertária. Não desse individualismo liberal irresponsável, mas por meio da relação com o outro, do dissenso e da construção coletiva, numa prática de cooperação entre sujeitos diversos, com suas formas particulares de pensar e sentir.

São momentos, né? Mas que bom que eles existem, e assim como vivo isso na banda e com as bandas que ouço, espero que nosso som possa colocar mais momentos assim.


-Quais os próximos planos de vocês?

Juliana: Para os próximos meses temos shows marcados, mas a ideia é concentrarmos mais na gravação do nosso primeiro EP ainda esse semestre.


-Deixo esse espaço aberto aqui para a banda mandar seu recado pra galera!

Juliana: Queria parabenizar o Canal Bloody Mary pela sua existência e agradecer pela entrevista, pelas perguntas, pelo espaço e pelo interesse pela lōtico.


Ouça "Ressonância" aqui:



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